Os dias 20 de Janeiro
São Sebastião, o Santo a quem devemos mais pedir em 2020.
Fotografias de Teresa Vivas
Todos os dias 20 de Janeiro, não se sabe ao certo desde quando, seguramente há mais de 3 séculos, a população de Couto Dornelas prepara e monta, nas suas 3 aldeias, durante uma semana, as Mesinhas de São Sebastião.
Contam-se duas lendas para esta festa se repetir há tanto tempo. As duas, em agradecimento a São Sebastião, padroeiro da guerra, da fome e das pestes, não imaginaria, naquela data, que tanto iríamos precisar dele neste ano de 2020. Uma das promessas teria sido pela protecção contra as invasões francesas, outra pela protecção face a uma peste que dizimou muitos animais. Seja qual delas for a mais verosímil prometeu-se que, neste dia, quem vier a qualquer uma das aldeias terá comida sobre a mesa.
É uma das mais bonitas festas que tive a privilégio de presenciar. Confesso que não ia preparada.
O dia estava gélido, a água dos tanques não se movia, aprisionada por placas de gelo, mas o frio faz parte da festa e destas nossas gentes. Procuramos o próximo para nos sentirmos mais quentes e a conversa flui com o comentário, que contraria a temperatura que nos gela.
O caminho prepara-nos para o que aí vem, com os vales verdejantes, as montanhas que ecoam entre si em tons de azul que se esbate, ao fundo no Marão, o ar tem o brilho dos dias frios mas solarengos. Na viagem, entre Carvalhelhos e Couto Dornelas, acompanha-nos um tacho com bochechas de vitela barrosã, estufadas, que Margarete fez para a festa. É uma viagem linda, mas o aroma do cozinhado tortura-nos o estômago, enche-nos a boca de água e não dá tréguas.
Chegados à Aldeia Grande, uma das três da freguesia de Couto Dornelas, as típicas casas do Barroso, e de montanha, são de pedra granítica, um conjunto cinzento ao longe que se entranha na paisagem. Entramos pelas traseiras de uma delas, os meus novos amigos, sim, Trás-os-Montes é assim, embora não conhecesse os donos da casa, Mari e Juan, quando cheguei, com o convite de entrar, vem sempre uma amizade para a vida toda.
A grelha está com as brasas no ponto, a mesa posta, as alheiras ao lume e os altos bifes de carne Barrosã temperados de sal grosso, estão prontos. Albano Álvares, é o guardião máximo desta raça tão especial, prepara-se para grelhar, na perfeição, a carne suculenta e tão saborosa desta raça. O pão de centeio, também não falha na mesa do primeiro mata bicho, acompanhado com vinho do agricultor.
Fala-se, durante estes momentos, da raça barrosã, animais felizes, que pastam em prados verdejantes, bordados a pedra, regressam diariamente para as suas cortes, onde passam a noite abrigados. Os seus cornos em lira, permitem distingui-los à distância de qualquer outra raça, são um dos orgulhos desta região, distinguida como paisagem agrícola protegida pela UNESCO.
Agasalhamo-nos novamente, para enfrentar o frio, desta vez para uma volta pela a Aldeia.
Saímos pela porta principal que dá para a mais comprida rua da Aldeia Grande, onde já está montada a mesa e cujo fim, e princípio, não consigo vislumbrar. Tem mais de um quilómetro, esta mesa comunitária montada a preceito para este efeito.
Tudo são detalhes de um carinho imenso pela tradição, a mesa, de tábuas corridas encostadas no topo uma a uma, não tem dois palmos de largura, são montadas sucessivamente sobre cavaletes, tudo feito à mão por artesãos locais e com madeira da região.
As toalhas são de linho, tecidas pelas mãos da população, propositadamente para a festa, não fosse a região produtora desta matéria prima têxtil tão nobre. Passam de geração em geração, para serem utilizadas neste dia. Até a louça, pratos e jarros, têm um preceito, se não são antigos, imitam e tentam manter a tradição, e cada aldeão leva os seus. Conseguimos distinguir quem é da aldeia de quem a visita para a comunhão, apenas pela louça e toalhas que partilham.
Como se esta mesa não fosse espanto suficiente, eis que surge o convite para ir visitar a “cozinha”. Enquanto caminhava imaginava uma cozinha industrial a produzir quantidades enormes de comida, avaliando pela quantidade de gente que esperava, oriunda de todas as redondezas e até das cidades mais próximas.
Entro num barracão de portas zincadas e pintadas de verde. São tantas pessoas que não entendo o que se passa ali, não me parece que seja uma cozinha revestida a alumínio e sem história. Mas era difícil ver o que se passava pelo número de pessoas que se amontoavam à minha frente. O aroma era delicioso, entre fumos e enchidos, disso tinha a certeza! Dois minutos depois, conforme as pessoas à minha frente se dissiparam, a “cozinha” ficou visível e não há palavras que expliquem: uma multidão entra e sai, as fotos não cessam, mas da impressionante azáfama, bloqueada por tanta gente e umas grades da altura da cintura, aparece o mais bonito lume de chão que já vi dentro de casa. O diâmetro é tão largo que é abraçado por um círculo de 25 potes de ferro forjado. É indescritível o calor que dali brota, o aroma que ali paira, a beleza daquele círculo, que se perpetua há mais de 300 anos, mas mais importante, a alegria de quem está ali a trabalhar para oferecer comida.
Gente sorridente e calorosa que ao ver o meu espanto e entusiasmo, pergunta: “É a primeira vez, não é?” tenho que me beliscar para acreditar que vivi 51 anos sem nunca ter aqui vindo, nem tão pouco ter conhecimento desta magnífica festa.
Olhando para trás, lembro-me que, há uns 17 anos, tive a sorte de assistir às festas do Espírito Santo, na Ilha de Santa Maria. Os cerca de 10 caldeirões, também numa fogueira medonha, eram mexidos com colheres de pau gigantes por 10 homens que coziam em cada um, vaca com os famosos nabos locais. Nessa festa, havia uma fila com mais de 100 pessoas fora de casa, aguardavam que as 40 pessoas que comiam o cozido, na sala de refeições dentro da casa e ao lado da cozinha, finalizassem a refeição, para se sentarem outras tantas. Também este ritual era o cumprimento de uma promessa ao Espírito Santo, que se faz por todo o arquipélago, ligeiramente diferente em cada ilha. A particularidade desta comunhão: todos se sentam ao mesmo tempo, mas ninguém se levanta enquanto houver alguém a comer.
Mas, de volta à Aldeia Grande, esclarece-me a mesma senhora: “tem direito a visitar a casa do lado de dentro”. Coloquei-me a caminho imediatamente, mas continuava sem saber o que me esperava. “passe depressa e não se demore, por favor, vamos começar a servir e complica muito termos pessoas por aqui”. Tentei cumprir, mas não estava à espera de ver o local onde guardam o trabalho de uma semana de produção de broas de milho e centeio. Cerca de 1 tonelada de farinhas transformada em broas de aproximadamente 2 quilos cada, a sala é revestida com estantes, guardam o pão como se fossem livros, do chão ao tecto, e estão repletas. O casal guardião explica: foram fermentadas, amassadas e cozidas durante esta semana.
Voltei rapidamente para a rua, para cumprir o prometido. Lá fora já estavam a ser servidas de metro a metro uma broa, dois homens, um de cada lado, seguram um pau que atravessa o caldeirão com as barrigas do porco fumadas e cozidas, distribuem-nas com a mesma cadência. Por fim, o arroz, cozinhado na água de cozer as carnes, tem um aspecto cremoso e um sabor inconfundível da boa carne de porco, é servido numa taça de madeira.
Mas antes, e mais importante para aquela população, passa São Sebastião, nas mãos do padre da paróquia. Todos quantos querem prestar homenagem, beijam a imagem e pedem mais um ano de festa, o que ninguém imaginava, naquele momento, era que iríamos todos precisar daquele patrono, durante este ano.
E o almoço começa, numa alegria contagiante, gargalhadas, copos de vinho embalados ao som do acordeão. Tudo em honra de São Sebastião que protege tão bem esta mesa, há mais de três séculos.
Do meu lado, fica a promessa da próxima visita, sim, já marquei o dia 20 de Janeiro 2021, no calendário. Pode juntar-se, leve boa disposição e vontade de contribuir para a festa de 2022, com a compra de broas.
Lembre-se que a mesa é um local de culto da humanidade, desde sempre. Ajude a manter e a melhorar este culto protegendo o que temos de melhor.
Prevê-se, portanto, para 2021, fazer uma grande festa, depois de toda esta peste nos deixar abraçar de novo.
Nota: Este texto não tem qualquer intenção de constrangimento religioso, é sim elaborado com o máximo respeito por uma população, pelas suas crenças e homenagem à sua cultura gastronómica.