Desde 2022 que Helena e Délcio Alves se dedicam ao cultivo de Milho Regional Açoriano, uma variedade em vias de extinção e cuja candidatura ao Catálogo Nacional de Variedades deverá ser aceite ainda em 2024.
Caminho do Sanguinhal 7
Água Retorta, Povoação
São Miguel, Açores
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Instagram / @quintadosanguinhal7
Apresentado por
João Rodrigues, Canalha
Texto de Inês Matos Andrade
Fotografias de Joana Freitas
Helena e Délcio Alves, ambos açorianos, ela nascida no Canadá, mas de coração em Água Retorta, em São Miguel; e ele das Flores, regressaram de Toronto para o sudeste da maior ilha dos Açores em 2022. No mesmo ano, decidiram começar a plantar Milho Regional Açoriano, primeiro, para consumo próprio e, mais tarde, como uma forma de ativismo alimentar: manter vivo um dos produtos mais identitários do arquipélago.
“O milho sempre foi o cereal dos pobres. As pessoas não conseguiam plantar trigo, e cultivavam milho. Usavam tudo, do grão ao carrilho, da folha à espiga. Enchiam colchões, tapetes, alimentavam os animais, usavam partes como papel higiénico ou para alimentar fogueiras”, conta Helena. Não é de admirar, por isso, que grande parte das receitas tradicionais açorianas incluam o milho na sua confeção: pão de milho, bolo de milho, bolo de sertã, papas grossas, milho cozido, bolo de forno, queijadas de milho, milho torrado – igual ao que os “homens levavam na algibeira no passado, quando saiam para a lavoura”.
Depois da primeira colheita, em outubro, Helena e Délcio decidiram recolher sabedoria no passado geracional para defender esta variedade e preservar o seu valor cultural. Os avós sempre plantaram milho, e foi no terreno do avô patero que construíram, em 2009, a casa onde agora vivem, e onde está o socalco com vista oceânica pejado de espigas de milho branco e amarelo.
“A certa altura, o milho híbrido tomou conta da ilha. O meu pai sempre teve o cuidado de evitar a contaminação das variedades regionais, fazendo sementeira em altitudes e fajãs onde não existiam outros cultivos de milho por perto”. Luís Silva, pai de Helena, selecionava as sementes das maçarocas mais especiais, o grão mais arredondado, da cor certa, para tentar garantir um resultado mais puro. “Dedicou-se a isto mais de 20 anos. O nosso milho não é exatamente o que os meus avós plantavam, mas é o melhor que conseguimos”.
Todo o processo que lhes permite armazenar pouco mais do que uma tonelada por ano – que se traduz em 500 quilos de farinha de milho – é totalmente artesanal. “Ainda encomendámos um semeador, mas não funcionou, percebemos que tínhamos de fazer tudo à mão”. Esse processo manual implica lavrar a terra em abril, abrir caseiras (vulgo regos), preparar a sementeira, fazer a primeira monda quando atinge os 15 centímetros. Dos vários grãos semeados, selecionam apenas a melhor planta. A monda é repetida com os pés nos 30 centímetros, e quando as maçarocas já estão com grãos cheios limpam-se as folhas secas. A colheita acontece no final de outubro, e as espigas são armazenadas ainda com folha, para conservar por mais tempo. Por fim, segue-se a enmancha (preparar os ramalhetes ou manchos de milho), antes de serem dispostos ao sol, para secar. No final do inverno, faz-se a desfolhada, e o calor do forno que coze o pão é aproveitado para secar a maçaroca, evitando o gorgulho e a borboleta. Quando esta fase está completa, cada maçaroca é selecionada, os grãos podres descartados, e é debulhada antes de seguir para a moagem em mó de pedra, na Ribeira Grande.
“Não usamos nenhum tipo de produto químico. Apenas fertilizante biológico, no início, porque este terreno era pasto, e em novembro semeamos a forragem [fava e tremoço] para aportar azoto à terra”. Nos 3000 metros quadrados de terreno a 290 metros acima do mar, convivem canídeos, felinos, aves, ovinos e outras centenas de seres vivos que garantem o equilíbrio do ecossistema. A cadela Lira passeia-se pela erva ajudando a controlar coelhos, garças e águias; os gatos Norte e Cinza caçam ratos e afastam os pássaros da horta e dos pomares. No galinheiro, vive Rio, um gato moribundo que Délcio resgatou, e que cresceu entre os galináceos, protegendo-os com atitude de guerrilha. “Acredito muito na intervenção animal e em deixar as coisas viver por si”, explica Décio, “é o que funciona melhor”.
A missão não termina nestes terrenos de Água Retorta. Helena desenvolveu, em conjunto com o engenheiro Duarte Pintado, um relatório de caracterização desta variedade de Milho Regional Açoriano. O milho foi testado em laboratório, para perceber as suas qualidades nutricionais e garantir a não presença de organismos geneticamente modificados. A candidatura para a inserção deste milho no Catálogo Nacional de Variedades de Espécies Agrícolas e Hortícolas foi aceite, e estão confiantes que aparecerá na lista no primeiro trimestre de 2024.
No futuro, querem fazer experiências culturais e gastronómicas à volta deste produto. “Podemos ensinar às pessoas como cultivar este milho, organizar visitas e atividades à volta da colheita, com provas das várias receitas tradicionais”.
Para já, a farinha da Quinta do Sanguinhal encontra-se à venda no Rei dos Queijos e Príncipe dos Queijos, e padaria Massa Mãe Açores, em Ponta Delgada, São Miguel.